TEXTO PARA OS ALUNOS DO 1º ANO - MANHÃ
HISTÓRIA - PROFESSOR DANIEL PINTO
Luís Fernando Veríssimo - O computador e o suicida
Átila e o Papa
Bárbaros
As civilizações costumam ter
problemas com seus limites. Sempre há uma questão na fronteira, uma civilização
diferente e portanto perigosa, ou um bárbaro sujo. Sempre há um bárbaro do
outro lado, um autêntico marginal. Sempre há um marginal. Contam que o Papa
Leo, para salvar Roma, concordou em ir ao acampamento de Átila, o rei dos
Hunos, o Flagelo de Deus, o sujo, e pedir clemência. Pois os marginais nem
sempre respeitam as margens e esse sujo rompera os limites do santo império
romano e ameaçava um dos seus dois corações. Apesar da idade e do cansaço com a
longa viagem o Santo Padre concentra toda a sua santidade num pedido a Deus
para que o levite, a fim de que ele possa vencer a faixa de lama e esterco que
separa sua liteira da boca da tenda de couro sem sacrificar sua dignidade, ou
pelo menos suas sapatilhas. Mas Deus não o ouve e o Papa desliza para dentro da
tenda onde Átila, que rói o que parece ser um fêmur humano, o recebe com uma
salva de gases.
- Átila…
- Eu prefiro Flagelo.
- Flagelo, este é um encontro
histórico. Você sabe o que é a História?
- Sei. Um monte de estrume. O que
sobra da experiência depois que nós a digerimos. Lixo.
- Gosto do seu latim.
O huno mostra o fêmur seboso que
acabou de limpar com os dentes.
- Preparei-me para o nosso encontro
comendo um dos seus escolásticos. Ruct!
- O que foi isso?
- Um arroto. Estranho não ter saído
em latim. Mas, nas suas erupções, todos os homens falam a mesma língua. As
conferências de paz deviam ser entre os mais mal-educados de cada nação. Talvez
seja por isso que nunca dão certo: sempre mandam os diplomatas. Mas você falava
da História.
- Este encontro ficará nos anais da
nossa História.
- Os hunos não têm anais. Não têm nem
um alfabeto. Nossa História é o que contam os nossos velhos, e cada um mente
mais do que o outro, para disfarçar o esquecimento. Entre os hunos, só os
cavalos sabem escrever. Nossa História está nos seus rastros, no que eles
deixam para trás. Lixo. Esqueletos, ruínas, mulheres estupradas e gado
carneado. Isso quando não estupramos o gado e carneamos as mulheres. Este seu
perfume…
- Extrato das glicínias de Roma.
- Ah, Roma.
- Você já a viu?
- De longe. Suspensa no ar. Uma
miragem.
- A Rainha das Colinas…
- A Eterna…
- Toda a História do mundo numa
cidade só. Todas as cidades numa cidade só…
- Breve a pilharemos. Com a devida
reverência.
- Você não pode falar sério! Por trás
desse exterior rude e dessas peles nodosas tem que haver um homem bom e
razoável, com sentimentos nobres e um coração altivo.
- Um romano, você quer dizer. Sinto
decepcioná-lo, Vossa Redolência, mas não há. Pelo menos não havia, da última
vez que tomei banho.
- Roma não é um lugar. Roma é uma
idéia, um parâmetro, um sonho, um triunfo do espírito. Roma é a memória e o
futuro da humanidade!
- Prometemos só roubar o que tiver
valor material. A literatura fica.
- Átila…
- Flagelo.
- Flagelo, poupe Roma. Me ofereço em
seu lugar. Fique comigo e deixe Roma!
- Obrigado, eu já comi. E Vossa
Fragrância me surpreende, fazendo apelos à consciência de um bárbaro. Eu não
tenho consciência. Eu sou tudo que Roma não é. Se Roma é uma conquista da
razão, foi essa inconsciência que ela conquistou.
E Átila bate no próprio peito,
fazendo saltar outro arroto.
- Me atribuir uma consciência, Vossa
Untuosidade – continua Átila – é diminuir a glória de Roma. Roma só é grande em
contraste com seus inferiores. A não ser…
E Átila cutuca o Papa com a ponta do
fêmur, convidando-o para uma cumplicidade de sujos.
- A não ser que vocês reconheçam que
não são muito diferentes de nós. Hein? Hein? Por trás desse exterior bem lavado
e desses panos bordados tem que haver um Átila adormecido. Vocês, apesar do
extrato de glicínias, também não são flor que se cheire. Admita isso e eu
admito ter uma consciência. Troco uma boa consciência por uma má.
- Não negamos nossa História.
- Negam, negam. Seus anais mentem
mais do que os nossos velhos. Vocês civilizaram meio mundo a patadas, como nós.
Só que nós não chamamos de civilização. Chamamos pelo seu nome exato. Talvez
seja a vantagem de não ter uma escrita…
- Nos regeneremos! Hoje somos um
império cristão.
- Isso depois de passar trezentos
anos perseguindo os cristãos e atirando-os aos leões. Sempre suspeitei que os
leões se enojaram primeiro.
- Está bem! Reconheço a nossa má
consciência. Agora reconheça a sua boa.
- Feito!
- O quê?
- Concordo
- Você poupará Roma?
- Claro que não.
- Mas…
- Vossa Ungüência, vocês levaram
trezentos anos para se converter e querem que eu me converta em três minutos?
Dêem-nos tempo. Ainda temos uns bons cem anos de pilhagem pela frente até
termos o bastante para nos tornarmos civilizados, talvez até cristãos.
- Seu, seu…
- Pode dizer. Bárbaro. Tenho a pele
grossa, sem falar nos cascões de sujeira. Ruct! Epa. O seu gramático não me fez
bem. Volte para Roma e diga que eu sou pior do que ela pensa, mais sujo, o que
só aumentará sua virtude. E que ela não se preocupe: sempre haverá um bárbaro
rondando as suas fronteiras para sua maior glória e indignação. Sempre há.
Está texto está no livro O suicida e
O computador.
Fonte: http://www.literal.com.br/luis-fernando-verissimo/por-ele-mesmo/barbaros/